A Utopia Perfeita.

Sinto-me um hipócrita de primeira apanha. Por muito que tente centrar a minha atenção, devoção e estudo nas obras jogáveis extraídas das mentes mais brilhantes do extremo Oriente, não resisto a um bom doce da nossa costa. Violência gratuita, um herói equipado com toneladas de metal bélico por conveniência gráfica e morte alheia sem filtro; são ideologias de desenvolvimento válidas, mas que, na maioria das vezes, dispenso. Mas, por ocasião, lá pego num ou noutro disco de tiro fácil e dedo no gatilho, para descarregar adrenalina ou admirar algum conceito com desenho superior. Talvez por isso… ou talvez para confirmar a tal hipocrisia esporádica.

Adquiri BioShock há cerca de seis meses, depois do lançamento da obra no continente Europeu. Ironia maior: importei a versão asiática do shooter da 2K Boston. Infelizmente, por falta de empenho e outras prioridades no meu cantinho de sonhos digitais, fui adiando a visita a Rapture. Só nas últimas semanas garanti o passaporte virtual para a cidade; um bilhete manchado com um misto de tristeza e atraso. Mas ainda bem que aceitei o desafio de BioShock. Hoje, depois de ver o final do jogo, sinto-me diferente, tocado, e motivado para jorrar um rio de palavras sobre esta utopia subaquática, esta viajem sem estação terminal que é BioShock. “Mais vale tarde que nunca” – que verdade absoluta!

Os teólogos raivosos que pregam os videojogos como uma paleta cinzenta, sem expressão artística ou valor ideológico, merecem uma visita a Rapture. A cidade apresenta uma tela policromática de inigualável sensibilidade e significado, com ideias discutíveis, mas ambiciosa e profundamente emocionante para os entusiastas. Ken Levine, visionário da 2K Boston, imaginou um mundo que transpira credibilidade, e espelha uma ‘pequena grande’ revolução social… no fundo do Oceano. O criativo norte-americano operou uma salada de emoções, sem comparação imediata, com um saboroso molho de qualidade técnica. Toda a água, arquitectura e modelos das personagens são desenhados com um sentido artístico inegável, e com um espírito evolutivo notável. O jogador de serviço sente a desolação, e absorve as intenções e história de cada segundo passado em Rapture. Uma pintura de execução precisa e relevante, propõe uma atitude reflectiva aos restantes peões da indústria. Visualmente, BioShock é o culminar de anos de trabalho, dedicação, e doses massificadas de talento.

Cohen’s Masterpiece por Gary Schyman (BSO de BioShock)

Desde o primeiro momento, quando vi a personagem central despenhar-se no meio do Oceano, salivei com a interpretação artística e visão maior da equipa de Levine;  a cidade perdida transmite um espírito quase claustrofóbico, mas apaixonante. A introdução à tragédia subaquática que ali aconteceu é feita de maneira muito subtil, e merecedora de reflexão e análise mais detalhada. O enredo, ou livro de filosofia mascarado de videojogo, é uma antítese perfeita entre várias ideologias políticas, e um escrutínio cru da alma Humana. Andrew Ryan, um russo que emigrou para os E.U.A. em busca de sucesso e glória pessoal, imaginou, construiu e liderou o ‘projecto Rapture’ desde o início. Uma cidade sem ‘Reis ou Deuses, só Homens’ que funcionaria como a colmeia elitista dos anos 40, do século XX. O objectivo idílico de Ryan era construir uma civilização, sem dependências exteriores, onde as melhores pessoas, em cada área da sociedade, viveriam livres do capitalismo forçado do resto do mundo. A utopia fracassou na sua concepção, causando a queda das paredes e, pior, da ideia de Rapture. Andrew falhou por pouco. BioShock conta a história de um sonho desfeito por arrogância, hipocrisia e ganância, onde o jogador acaba por ser um actor convidado num romance feio, fantasiado, mas simultaneamente tão real e orgânico.

Não sendo o maior adepto das cut-scenes como método de explorar determinado enredo, Ken Levine, responsável pelo notável System Shock II, introduziu uma forma muito pouco convencional para contar um conto. Em BioShock, toda a história é contada através de pequenos registos de voz espalhados pelo cenário da obra. São gravações deixadas por personagens relevantes na trama, que nunca interrompem a sessão de jogo em curso. Esta mecânica, fluída e marcante, tem o mérito de causar algum desconforto intencional ao jogador, e realçar uma assinatura ímpar na actualidade da indústria. Independentemente da soberba qualidade narrativa, acredito que este quadro pintado a letras, cores e folclore digital, desacredita definitivamente os apóstolos da vertente cinematográfica dos videojogos. Mais uma vez, penso que ficaria bem na foto de família de BioShock; como seguidor da obra de Hideo Kojima, a hipocrisia fica-me mal. Mas, atento leitor deste espaço: louvem-se os méritos dos génios da 2K Boston.

whyevenask

Contudo, a elasticidade moral em BioShock mudou significativamente a minha visão sobre o factor ‘Escolha’ num qualquer título. Para além das supra discutidas Little Sisters, que podem ser salvas ou mortas pelo jogador, é tocante assistir ao desenvolvimento emocional e intelectual das personagens, através dos diários sonoros ou conversações por rádio. Não existe uma direcção binária, aborrecida e previsível. As personagens centrais do enredo nunca tomam atitudes unidireccionais; a noção entre o ‘Bem’ e o ‘Mal’ é muito subjectiva e quase secundária.

O toque de Midas em cenários vestidos da melhor subtileza e qualidade artística acaba por ser a relação entre os Big Daddys (gigantes agressivos que deambulam por Rapture) e as Little Sisters (‘abutres necessários’ e objectos… comerciais para um determinado personagem). Existe uma relação quase umbilical entre um Big Daddy e uma Little Sister: o primeiro protege sempre a segunda. Este enquadramento deixa o jogador de garganta seca, quando se vê obrigado a disparar sobre um Big Daddy, mesmo compreendendo a sua função. O mesmo é válido para os restantes adversários e agressores de Rapture; são todos habitantes da cidade, levados à loucura por uma configuração de acontecimentos.

A consistência do motor de jogo também foi uma agradabilíssima surpresa. BioShock sugere uma atitude experimental, com o recurso a ‘Plasmids’; habilidades sobre-humanas que o jogador experimenta. Atacar um grupo de adversários aguerridos, com um bando de abelhas, ou introduzir os mesmos à magia da combustão em grupo, é uma experiência visceral e única. O equilíbrio entre armas de fogo clássicas e estas capacidades… geneticamente superiores, deixam um sabor dulcíssimo na boca dos aficionados dos shooters tradicionais e adeptos da fantasia circense doutras praças.

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Contudo, o maior elogio que posso tecer aos princípios da jogabilidade de BioShock é ironicamente simplista: a obra da 2K Boston é muito, muito divertida. Além de ter bebido o enredo e guião de forma quase adita, o motor transportou o amigo escrivão até outras experiências, onde a visão clássica dos FPS tem uma relação simbiótica com as aventuras mais conservadoras. Sim, mesmo considerando o enredo como o coração ideológico de BioShock, o título acaba por ser uma aventura bem maquilhada com banhos de sangue e pólvora. Mesmo noutra onda conceptual, lembre-se de Metroid Prime. Considera a obra da Retro Studios um… FPS?

Para concluir esta lista de elogios a BioShock, falta considerar a banda sonora do título. Os meus ouvidos, pouco treinados na componente mais técnica da música, mas ainda assim exigentes, já reconheceram valor a muitas composições na actual geração de máquinas. Do brilhantismo de Super Mario Galaxy ao esplendor de Metroid Prime 3: Corruption, adorei um bom número de temas, mas não me tocaram tanto com os originais de BioShock, compostos por Gary Schyman. Referi que a acção é, quase sempre, emocionante. Pois o feito é alcançado numa mescla de qualidade artística visual, e pela poderosa e bem colocada sonoplastia. Entre os inúmeros temas fortíssimos, destaco o fabuloso Cohen’s Masterpiece: composição dedicada a um habitante muito especial de Rapture, o artista central da praça. Se a carteira do fiel leitor ainda estiver saudável, recomendo especial atenção à banda sonora de BioShock, que pode ser adquirida em qualquer loja da especialidade. Pela alma e ideia, vale o custo.

evesgarden

O leitor mais concentrado na escrita emotiva deste escravo digital, notou o meu cuidado ao não levantar muito pó relativo ao enredo, e consequências da acção, em BioShock. Faço questão que assim seja. Poderia descrever detalhadamente os melhores momentos da obra, mas prefiro louvar a qualidade mais abrangente do disco. Mais, ao escrever estas linhas, contenho-me para não gritar o destino final de Rapture, ou louvar a caracterização de personagens como Sander Cohen, Frank Fontaine ou o próprio Andrew Ryan, mas prefiro reservar esse direito ao provável explorador de BioShock que lê este texto. Com o Natal à porta, acredite nisto: não oferecerá melhor presente que o disco de BioShock, embrulhado com amor pelo destinatário. Considerando que o título está disponível para três plataformas (Xbox 360, Playstation 3 e PC), não tem desculpa: aventure-se, descubra BioShock e sinta-se bem por ter escolhido os videojogos como principal meio de entretenimento. Que este relatório pessoal sirva de incentivo…

Aceite o meu convite. Desça até ao coração de Rapture, ‘would you kindly’?

7 Respostas to “A Utopia Perfeita.”


  1. 1 Terebi-kun Domingo, Dezembro 14, 2008 às 0:04

    “Por muito que tente centrar a minha atenção, devoção e estudo nas obras jogáveis extraídas das mentes mais brilhantes do extremo Oriente, não resisto a um bom doce da nossa costa.”

    Acho que não há aqui nenhuma hipocrisia. São jogos muito diferentes, a diferentes alturas sentimo-nos mais atraídos para uns, ou para outros. E sendo diferentes, é natural se acabarmos por ganhar preferência a um, ou a outro. =) Portanto, se andas a jogar assim tantos jogos japoneses como o comentário parece indicar, talvez seja altura de te divertires mais com alguns jogos ocidentais X)

    “Com o Natal à porta, acredite nisto: não oferecerá melhor presente que o disco de BioShock, embrulhado com amor pelo destinatário.”

    E por serem diferentes, eu não seria capaz de recomendar um jogo assim com tanta certeza, a toda a gente. Não há jogos que agradem a toda a gente, e tem na maior parte das vezes a ver com o que cada um gosta. Já tive muitas discussões, em que nos jogos com “altes-grafiques” super realistas as personagens parecem-me todas iguais, e em resposta um amigo manda vir com as cores e as bonecadas de jogos que eu gosto. E isto não tem a ver com a pessoa “limitar-se” a um estilo ou outro de jogo, são mesmo gostos, e há alturas em que se gosta mais de umas coisas, e outras doutras.

    Por exemplo, depois de ouvir falar maravilhas, joguei e cheguei ao fim do Planescape:Torment. No entanto, não foi um jogo que me cativasse… não me deu metade da imersão de um Phoenix Wright, por exemplo. No entanto, é impensável ir agora sugerir aos fãs do Planescape que joguem o Phoenix Wright, e dizer que é mais imersivo que o Planescape. Porque para a maior parte deles, não vai ser mesmo X|

    Só para terminar este ponto, eu não joguei Bioshock (sem ser um pouco da demo), mas não fiquei com impressão que fosse um jogo com um appeal generalista.

    “Este enquadramento deixa o jogador de garganta seca, quando se vê obrigado a disparar sobre um Big Daddy, mesmo compreendendo a sua função.”

    Já agora, dizer que isto fez-me lembrar muito o Shadow of the Colossus =) Um jogo de amei jogar, mas também não era capaz de recomendar a toda a gente =|

  2. 2 Daniel Costa Domingo, Dezembro 14, 2008 às 10:57

    “Só para terminar este ponto, eu não joguei Bioshock (sem ser um pouco da demo), mas não fiquei com impressão que fosse um jogo com um appeal generalista.”

    Mas não disse que BioShock tinha um apelo generalista, aliás, concordo; não tem. Mas esta é uma luta muito antiga, Terebi-kun. Sou daqueles fieis resistentes que acreditam no bom gosto das pessoas, que não ficam ´presas’ a um determinado género ou série. Junta isso à qualidade ao quilo embutida no disco de BioShock, e está feita a recomendação ao mainstream. 🙂

  3. 3 Terebi-kun Segunda-feira, Dezembro 15, 2008 às 23:35

    “Sou daqueles fieis resistentes que acreditam no bom gosto das pessoas, que não ficam ´presas’ a um determinado género ou série. Junta isso à qualidade ao quilo embutida no disco de BioShock, e está feita a recomendação ao mainstream. :)”

    Então só dois pontos:

    – Para quem não está habituado aos jogos, o BioShock não será um título que possa afastar mais a pessoa que atraí-la? Dar um King Lear a alguém que está a começar a ler é, geralmente, meio-caminho para a afastar da leitura.

    – A única coisa que me chateou no post (nem nos devemos chatear muito com ele, uma vez que é sobretudo um artigo de opinião) foi o tom absoluto que senti durante a leitura. Fiquei com a impressão que se estava a dizer que não era possível que alguém, que não está preso a nenhum género ou série, pudesse jogar BioShock e não achar nada de especial, ou não lhe dizer nada. E esse tipo de coisas chateia-me X)

  4. 4 Daniel Costa Terça-feira, Dezembro 16, 2008 às 12:47

    Terebi-kun,

    Tom absoluto? Credo! O artigo é só a minha opinião pessoal sobre o título, num ‘tom’ simpático de recomendação…
    Não leves isto tão a sério, que eu também não 🙂


  1. 1 BioShock 2 empurrado para 2010, Activision tenta engordar os cofres com Modern Warfare 2. « Now Loading Blog… Trackback em Sexta-feira, Julho 24, 2009 às 22:11
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