A Doce Sinfonia da Noite.

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Assumo a negligencia premeditada; não acompanhei a série Castlevania ao longo dos anos, como gostaria. Contudo, tenho passado alguns Invernos aconchegado, ao lado da chama apaixonante da Konami. Jogar e entender a arte de qualquer Castlevania é um processo moroso, mas único e compensador. Ao leitor menos atento à competência da série, recomendo o folhear cuidado das páginas com a história do clã Belmont, na luta contra o clássico Dracula. Felizmente, para o admirador gótico de ocasião, com especial apreço por metros de cabedal e o Universo dos vampiros, cada título desta série pode ser experimentado sem grande apego ao capítulo anterior. Embora o enredo, que se expande por séculos, possa ser estrutural exigente, o ambiente claustrofóbico e a magia original transparecem pelas paredes da mansão misteriosa.

Castlevania: Symphony of the Night será o exemplo maior dos feitos técnicos e artísticos da Konami. A equipa nipónica oferece um banquete de criatividade, temperado com doses certas de acção, plataformas e RPG, bem ao gosto do escriba de serviço. É-me difícil qualificar a qualidade e exuberância artística da obra, sem a bengala da objectividade e crítica pormenorizada. Mas Symphony of the Night é um título que se dispensa de detalhes e meras formalidades de análise. Quando um jogo se assume como a soma dos talentos envolvidos na sua concepção, a certeza de oferecer um produto diferente, original, mas vanguardista e acessível, sublinha a postura orgulhosa da Konami e respectiva equipa de desenvolvimento.
Symphony of the Night é o resultado duma relação proibida, mas fortuita, entre as raízes da série que representa e a absorção de ideias do alheio. Considerando o passado glorioso, mas convencional e fixo, da série, a introdução pioneira de uma mecânica mais próxima aos RPG ramifica a experiência original. O sabor ímpar do level-up chegou a Castlevania, acompanhado por uma dose modesta de gestão do inventário e equipamento bélico a rigor. Aliás, Symphony of the Night apresenta uma selecção de armamento interessante, construída por lâminas de inspiração gótica e os chicotes mais clássicos. Mas a génese desta obra alastra qualidade, além dos processos mecânicos e inspiração técnica. Há uma alma gigante, um leque de valores único, e sensibilidade artística maior no disco de jogo. Explorar a mansão de Dracula é tão gratificante como experimentar as plataformas e a dinâmica de acção do título, sempre admirando a pintura fresca, original e marcante de cada monstro ou objecto no cenário.

Pela primeira vez em toda a série, o jogador assume o controlo de um… vampiro. Alucard é o protagonista nesta odisseia gótica e sangrenta, assumindo-se como aliado do clã Belmont na demanda secular para derrotar o seu próprio pai – o Dracula, claro. Repare que este paralelismo (conduzir a Diáspora do vilão do enredo) havia sido pouco explorado até ao lançamento do título, em 1997. Felizmente, Koji Igarashi (designer e co-autor do guião) decidiu dotar o jogador com poder sobre-humano, apoiado por feitiços e uma invulgar capacidade de resistência do protagonista. Consagre-se o mérito da ideia; senti-me verdadeiramente poderoso ao comando de Alucard.
Michiru Yamane volta a enfeitiçar o castelo de Castlevania, envolvendo o jogador com uma banda sonora notável, com mostras de sensibilidade e interpretação da obra. Aliás, a dedicação de cada membro da equipa de desenvolvimento da Konami é palpável em cada segundo da aventura.

Symphony of the Night é, portanto, uma ode intemporal à arte nos videojogos. Toda a pintura conceptual foi imaginada e concebida por um talento maior da indústria, uma autodidacta genial que enriquece e aflora a vista do jogador. A japonesa Ayami Kojima assumiu a rédea da vertente artística da série, precisamente desde Symphony of Night. Para o registo, louvo a escolha sensível e certeira da Konami para o lugar. Desde que passei os olhos pelo trabalho de arte original (baseado em pintura a pastel) da artista, adicionei mais um retrato à minha galeria de notáveis dos videojogos. Para além de partilhar o sobrenome com outro mago maior destas lides, ‘santo’ Hideo, Kojima ajudou a pintar o painel de competências que hoje reconhecemos à série Castlevania. Juntamente com o criativo, e exuberante, Koji “IGA” Igarashi, Ayami espantou o mundo do entretenimento digital, no final dos anos 90. Ao leitor mais desatento, provavelmente alheio aos méritos da obra, apresento um convite – descubra porquê.

4 Respostas to “A Doce Sinfonia da Noite.”


  1. 1 Diogo Ribeiro Segunda-feira, Maio 11, 2009 às 15:05

    Ah, as memórias… 🙂

    Não sei bem qual dos jogos da série é o meu favorito. Durante algum tempo o SotN manteve o primeiro lugar mas ao descobrir o seu predecessor directo – Rondo of Blood – mantenho ambos na mesma posição. Isto porque enquanto o título da PSX foi a evolução natural da série, o RoB foi talvez o último CV “tradicional”. Segmentado por níveis, repleto de segredos, dois personagens jogáveis, bastante ‘arcade’ e com uma dificuldade quase imperdoável… Mas foi sem dúvida o elo perdido da série porque incluía quase tudo o que tornou a sequela um título de eleição (isto, claro, sem menosprezar o Simon’s Quest para a NES que, apesar de trucidado pela crítica e jogadores na altura do seu lançamento, foi o protótipo para onde a série se encontra hoje). Desde a banda sonora à arte, SotN deve muito a Rondo of Blood, e seria um bom exercício especulativo imaginar a recepção que ele teria se tivesse sido lançado fora do Japão. E é sempre interessante acabar Rondo onde o Symphony começa – com o Richter a subir as clássicas escadas alcatifadas em direcção ao Dracula 😉

    Só fico um pouco de pé atrás com a introdução de elementos de role-play. Penso que por um lado foi um elemento que o tornou mais acessível a novos jogadores, mas que a meu ver retirou algum do charme (se assim o podemos considerar) da série. Isto porque a dificuldade da série – com possível excepção encontrada no recente Order of Ecclesia – diminuiu consideravelmente. Onde outrora reflexos eram indispensáveis, a introdução de níveis de poder e equipamento facilitou o sucesso. O próprio SotN padecia disso: lembro-me claramente de alcançar o castelo invertido e aniquilar três ou quatro ‘bosses’ de seguida devido ao nível elevado de Alucard, e dos níveis nesse mesmo castelo serem passados sem grandes problemas. Os jogos seguintes também me pareceram bastante fáceis por comparação. Já as opções de jogar com o próprio Richter no SotN (ou o Julius em Aria e Dawn of Sorrow), mais tradicionais, voltavam a subir a fasquia.

    Bom texto, deu-me vontade de voltar a jogar e falar sobre o jogo 🙂

  2. 2 DannyCosta Segunda-feira, Maio 11, 2009 às 19:19

    Ainda cheguei a ter uma cópia de Rondo of Blood na mão, mas nunca adquiri o doce…
    Só mais tarde pude testemunhar a ressurreição de Castlevania pela mão de Richter, na PC-Engine CD. Mas, multa-me, continuo a preferir Symphony of the Night. Nem a mecânica de absorção de Order of Ecclesia rouba o lugar à pérola do Sr. IGArashi. 🙂

  3. 3 Diogo Ribeiro Terça-feira, Maio 12, 2009 às 10:11

    Claro 🙂 SotN é, mesmo nos seus momentos menos conseguidos, o jogo mais completo e refinado. O Rondo permanece como um título bem conseguido da “velha guarda” (talvez o melhor nesse aspecto).

  4. 4 Ricardo Sexta-feira, Maio 15, 2009 às 10:36

    SotN é um dos meus títulos favoritos da série, sem dúvida, mas está ali par a par com o RoB. Grande foi o meu espanto quando descobri que em Castlevania: The Dracula X Chronicles podia desbloquear e jogar ambos os títulos 🙂 uma pérola!


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